quinta-feira, 8 de março de 2012

Os gatos


Ele olha mais uma vez no seu relógio e o ponteiro ainda não saiu do lugar desde a última vez que ele olhou. Sua mulher conversa com as amigas no outro lado do salão e seu filho brinca com seus amigos no parquinho. Ele fica pensando no quanto gastaram com essa festa e se ele gastaria o mesmo com o filho. Chega à conclusão que não gastaria muito com um aniversário desses. O aniversariante tem um ano, nunca vai lembrar-se disso. Fica ali, feito um bobo, passando de mão em mão, parecendo um boneco torto. Ele já chorou, já dormiu e enquanto isso os meninos quebravam o balanço do parquinho, que será acrescentado à conta que eles terão de pagar. Ele fuma mais um cigarro. E repete pra si mesmo: “É a última vez que eu venho pra um aniversário de criança.”
Ele não gosta de bolo. Só come os salgadinhos. Não tem muitos motivos para ir pra essas festas. Ele vai somente para agradar a mulher. Ela diz que seria feio não ir. Vem com o mesmo discurso de sempre, dizendo que ele nunca sai de casa, que quando fizeram o convite para eles, pensaram realmente com a presença da família. Enquanto ela falava, ele colocava os fones de ouvido do computador e escutava música no máximo que seus ouvidos aguentavam.
Mais uma vez, olha para o relógio. O ponteiro dos minutos andou duas casas. Ele espera a mulher dele olhar. Quando ela olha, ele faz um sinal com as mãos e com o olhar, dizendo que quer ir embora. Ela faz um sinal que ele já conhece, pois ela sempre responde da mesma forma. É o sinal do “Peraí, amor. A gente vai já.” Mas ele sabe que não vão embora antes de todo mundo. Ele sempre fica feito um bobo na mesa, olhando para o relógio de cinco em cinco minutos e percebe que só passaram-se dois minutos. Olha para o relógio de novo. Ele podia ter deixado a chave de casa no bolso, mas parece que ela sabia que isso ia acontecer. Ela, no meio do caminho, tirou a chave do porta-luvas do carro e pôs na bolsa. Chega. Ele levanta-se e vai até ela. Atravessa o salão e não liga para a dor que o ataca de leve no joelho. Ele pensa em emagrecer, mas não. Ele gosta dos salgadinhos dos aniversários de criança, gosta de bacon e de pizza.
“Acho que os bolinhos não me fizeram bem...” Passa a mão na barriga. “Acho que eu vou indo embora. Cadê a chave?”
Ele sabe muito bem onde estava a chave, mas fez questão de perguntar, queria enfatizar que ele tinha poder. PODER. Quando ele pediu a chave para a esposa, todas as amigas dela, que não tinham percebido a presença dele, olharam para ele com um olhar de censura, um olhar que dizia: “O quê?! Você vai sair antes de cantar os parabéns? Que tipo de pessoa é você. Todos sabem que só se sai de um aniversário quando se canta os parabéns, cara. Você vai mesmo fazer isso?” Ele mesmo ficou impressionado com a quantidade de coisas que uma pessoa pode falar somente com um olhar.
A mulher dele não fez o mesmo olhar que as amigas, incrivelmente ela deu a chave sem muitas demoras. Porém, ele percebeu alguma surpresa nos movimentos e no comportamento dela. Já com a chave na mão, ele sai sem muitas delongas. Mas antes de sair, pega a bandeja de salgadinhos. Mesmo estando “mal” por causa deles.
Quase não parou ao longo do caminho de casa.
Quando chegou foi assistir TV, tirou a camisa suada e gordurosa e colocou no cesto de roupas sujas, mas quando ia saindo da área de serviços lembrou que a mulher não gostava que ele colocasse camisas suadas no cesto, ela dizia que mofava a roupa. Ele voltou e tirou-a e colocou direto na pia, de molho. Voltou para a TV. Um programa de humor sem graça, ele pula de canal em canal e lembra-se de um vendedor de TV a cabo que passou por esses dias pela casa dele. Ele devia ter comprado, mesmo que fosse o pacote simples. A mulher dele só vê aquelas novelas mexicanas, o filho só vê desenho animado e ele só gosta dos programas de humor. Seria uma ótima jogada. Ele pensa nos canais da TV a cabo e conclui que ela seria útil para todos. Tem canal com programação humorística, desenhos animados e ele acha que tem um somente com novelas mexicanas, mas na verdade não tem. Não no plano mais barato, que seria, com certeza, o que ele escolheria. Ele pensa no dinheiro que gastaria, e pensa também no dinheiro que nunca gastaria com a festa do filho. Ele é um cara bom, tem os seus princípios e normalmente é muito egoísta.
A mulher e o filho chegam.
Ele se ajeita na poltrona e baixa um pouco o volume da TV enquanto ela abre a porta. Ele pensa na chave. “Ela estava com a dela e ainda pegou a minha no meio do caminho...” Mas tudo continua, como se sempre as coisas fossem assim. Há tempos que ele não fazia muitas coisas, há tempos que ele sentia que o casamento estava prestes a acabar. A criança também sabia disso. Ela sabia disso. A vizinha da direita, que por falta de companhia ou por simplesmente curiosidade colava o mesmo copo de vidro na parede da cozinha dela, que era colada com o quarto do casal, e ficava ali, és jota do as brigas e depois contas do para si mesma tudo que ouvia.
Iam pro quarto quando começavam a brigar, pois o não queria que o pobre do menino ouvisse as discussões. Mas eles mal sabiam que o moleque, assim como a vizinha da direita, colava seus ouvia à espreita dos gritos abafados e ouvia todas as difusas fés e argumentos. Chorava de madrugada e no meio da noite ele ia para o quarto dos pais e dizia, ainda com lagrimas nos olhos.
- posso dormir aqui?
Dizia que havia sonhado um pesadelo e não que não  conseguiria dormir sozinho, mas na verdade ele fazia aquilo somente para que os pais dormissem com algum elo entre eles. O moleque sabia que era um elo entre os dois.
Foram fingindo que estava tudo bem durante muitos tempos. O menino indo à escola todos os dias, o homem saindo com sua camisa manchada de café que a mulher já cansara de esfregar. A mulher com seus fios de cabelos que saíam do elástico e com uma tentativa de maquiagem um tanto borrada para apenas algumas horas da manhã. Parecia dormir maquiada e à noite sonhar com pequenos pesadelos curtos que a fazia ter espasmos na região do rosto, e nesses espasmos, o lençol sujava-se de preto e vermelho. Talvez seus olhos fossem pretos sem aquelas coisas que eu não sei falar o nome. Ela tinha tudo pra ser bonita, mas o amor não deixava.
O menino ainda era o elo. Todos os dias, depois que ele saía, o casal ficava em casa. Por vezes, ainda tentavam ser um casal, mas o suposto amor ostentado por dois hipócritas e um menino cego pela fé não existia. Aquilo era uma vida em colisão com os átomos em choque do Sol. Era ilusão...

A mulher estava na rua do centro da cidade procurando um vestido novo para tentar levantar a auto estima e repelir o amor que estava acabando com a beleza quase morta dela. Procurou. Procurou. Não achou.
Voltou para casa com passos desolados. Subiu os lances de escada com uma sonolência superior à normal. Subiu as escadas de ares mortíferos. Subiu cada degrau com uma melancolia de presságio. Caminhou no corredor. O mundo todo só ouvia seus passos curtos, elegantes e medidos perfeitamente para caberem nessas linhas. Ela parecia saber que eu estava ouvindo tudo. Eu ouvi até o momento em que ela girou a chave devagar demais, como alguém que fizesse aquilo com um esforço anormal, fez aquilo como quem não queria fazer. Girou a chave mais uma vez. Eu encostei o copo na parede o máximo que consegui e ouvi quando ela balbuciou o nome dele devagar, como quando você não acredita em algo e repete um palavrão ou uma prece sagrada devagar e com voz suavemente estranha. Ele estava morto, sentado na poltrona. Um de seus gatos lambia a sua mão, que pendia da poltrona e quase tocava o chão e o empestava com sua doença de morte. Suas veias agora eram vias engarrafadas. Ele estava morto. E estava sozinho, como os gatos. O amor morreu e as paredes têm ouvidos.






                       via salvador de suicidas

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