Para quem se pergunta porque eu não invisto em narrativas.
Eu
poderia ler um livro para ela, no tempo em que nós nos amávamos.
Poderia até ter escrito um para ela. Poderia ter tomado um sorvete
no verão, mas o verão não chegou. Chegar ele chegou, mas eu e ela
não chegamos até ele juntos. Não chegamos ao inverno. Não
chegamos a nenhuma estação definida. Os dias que compartilhamos
foram apenas dias, choveu, fez sol, nevou e caíram folhas sobre nós.
Na verdade, nem o que aconteceu entre mim e ela foi especial. Sabe
porquê? Por causa do pé dela.
Eu até
me encontrava nela, me divertia, mas o pé dela me expulsava. Havia
algo de errado com ele. Talvez nada demais. Gostava quando ela
calçava os tênis, só isso. Odiava ter que encarar o pé dela.
Eu correria o através
de todo o Egito, se ela estivesse devidamente calçada.
Pode parecer loucura,
mas o pé dela não gostava de mim. Ou seria eu que não gostava do
pé dela? O fato é que o culpado de tudo foi o pé dela.
Não
havia cheiro nem formas absurdas. Era o simples fato do pé dela
existir. Depois dela houve outra mulher. Esta tinha o nariz bonito.
Não que a outra não tivesse, mas é um ponto que deve ser levantado
aqui. O nariz dela era realmente bonito. Fino e pontudo, dizia-me que
direção seguir. Chamava-se Laura. Eu adorava repetir o nome dela
antes de dormir. Adorava chamá-la sem necessidade, somente pelo
prazer de repetir seu nome. Laura, Laura, Laura. Para esta eu li um
livro. Até tentei escrever um, se não fosse o dia em que decidimos
dormir juntos. Neste dia, após todos os devidos acontecimentos que
assolam a dormida de um homem na casa de sua quase namorada, fomos
dormir.
Ele
pediu-me para dormir ao contrário. Meus pés ficariam para a cara
dela e os dela para a minha cara. Como na regra de três que o
professor ensinou enquanto você dormia na aula. Assim o fiz. Esse
foi o erro. Não dormir na aula de matemática, mas dormir com os pés
na cara dela. Na verdade, o erro foi ela ter dormido com os dela na
minha.
Ao
acordar, dei de cara com os pés dela. Não suportei o que vi. Senti
os pelos do meu corpo trêmulos, aflitos. Desesperado, gritei. Ela
acordou. Estava nua. Se nós tivéssemos dormido normalmente naquela
noite, tudo ocorreria bem e eu poderia apreciar o belo corpo dela,
mas ela havia dormido com seus pés na minha cara e eu havia o visto
cheio de detalhes. Detalhes que me assombraram. Detalhes que fizeram
eu sair daquela casa e não lembrar-me mais da noite que tive com
ela.
Foi
assim que mais um pé acabou com um relacionamento meu.
Mais um
pé horrendo que eu me livrara. Mais um amor que se foi em meio ao
meu problema psico-afetivo com os pés das moças.
Até
tentei ir num psicólogo, mas não confiaria minha fobia de pés de
moças com as quais desenvolvo relacionamentos a um psicólogo homem,
então o jeito foi ir a uma psicóloga. Mas adivinha...? Os pés
dela!
O
problema maior foi quando passou a não ser um problema que envolvia
moças e pés. O problema ficou sério quando passou a envolver
somente pés. Porque o mundo está tão cheio de pés?
As
pessoas estão para lá e para cá, todas com seus pés. Indo e
vindo. Eu corria de todos que tinham pelo menos um pé. Imagine minha
reação ao ver uma centopeia!
Me
confinei. Não havia mais porquê sair de casa, se toda vez que eu
via um pé eu gritava e corria. Era um risco para mim e para quem
tinha pés. Eu era um louco fissurado em tudo que não tinha pé.
Passei odiar patas. Passei a não ver TV. A única coisa que eu fazia
era não pensar em pés.
Mas
ainda havia os meus. Após passar três dias criando coragem para
fazê-lo, cortei meus pés com uma serra de madeira que eu havia
herdado do meu pai. Cortei-os fora. Muito sangue. Após alguns
minutos tentando estancar os meus tornozelos, decidi que o melhor
seria mesmo morrer. Deixei o sangue fluir. O que me motivou foi a
esperança de haver um lugar para mim após a minha morte. Um lugar
onde não houvessem pés.
Morri.
Sem pés. Meus pés pareciam sapatos, descansando no canto da parede.
E para a minha surpresa, Deus existia. E sabe um segredo que não
contaram na Bíblia? - talvez estejam guardando para a próxima
edição.
Deus não
tem pés.
Você e suas mortes...
ResponderExcluir;o)