sábado, 4 de agosto de 2012

Corrida



Para quem se pergunta porque eu não invisto em narrativas.

Eu poderia ler um livro para ela, no tempo em que nós nos amávamos. Poderia até ter escrito um para ela. Poderia ter tomado um sorvete no verão, mas o verão não chegou. Chegar ele chegou, mas eu e ela não chegamos até ele juntos. Não chegamos ao inverno. Não chegamos a nenhuma estação definida. Os dias que compartilhamos foram apenas dias, choveu, fez sol, nevou e caíram folhas sobre nós. Na verdade, nem o que aconteceu entre mim e ela foi especial. Sabe porquê? Por causa do pé dela.
Eu até me encontrava nela, me divertia, mas o pé dela me expulsava. Havia algo de errado com ele. Talvez nada demais. Gostava quando ela calçava os tênis, só isso. Odiava ter que encarar o pé dela.
Eu correria o através de todo o Egito, se ela estivesse devidamente calçada.
Pode parecer loucura, mas o pé dela não gostava de mim. Ou seria eu que não gostava do pé dela? O fato é que o culpado de tudo foi o pé dela.
Não havia cheiro nem formas absurdas. Era o simples fato do pé dela existir. Depois dela houve outra mulher. Esta tinha o nariz bonito. Não que a outra não tivesse, mas é um ponto que deve ser levantado aqui. O nariz dela era realmente bonito. Fino e pontudo, dizia-me que direção seguir. Chamava-se Laura. Eu adorava repetir o nome dela antes de dormir. Adorava chamá-la sem necessidade, somente pelo prazer de repetir seu nome. Laura, Laura, Laura. Para esta eu li um livro. Até tentei escrever um, se não fosse o dia em que decidimos dormir juntos. Neste dia, após todos os devidos acontecimentos que assolam a dormida de um homem na casa de sua quase namorada, fomos dormir.
Ele pediu-me para dormir ao contrário. Meus pés ficariam para a cara dela e os dela para a minha cara. Como na regra de três que o professor ensinou enquanto você dormia na aula. Assim o fiz. Esse foi o erro. Não dormir na aula de matemática, mas dormir com os pés na cara dela. Na verdade, o erro foi ela ter dormido com os dela na minha.
Ao acordar, dei de cara com os pés dela. Não suportei o que vi. Senti os pelos do meu corpo trêmulos, aflitos. Desesperado, gritei. Ela acordou. Estava nua. Se nós tivéssemos dormido normalmente naquela noite, tudo ocorreria bem e eu poderia apreciar o belo corpo dela, mas ela havia dormido com seus pés na minha cara e eu havia o visto cheio de detalhes. Detalhes que me assombraram. Detalhes que fizeram eu sair daquela casa e não lembrar-me mais da noite que tive com ela.
Foi assim que mais um pé acabou com um relacionamento meu.
Mais um pé horrendo que eu me livrara. Mais um amor que se foi em meio ao meu problema psico-afetivo com os pés das moças.
Até tentei ir num psicólogo, mas não confiaria minha fobia de pés de moças com as quais desenvolvo relacionamentos a um psicólogo homem, então o jeito foi ir a uma psicóloga. Mas adivinha...? Os pés dela!
O problema maior foi quando passou a não ser um problema que envolvia moças e pés. O problema ficou sério quando passou a envolver somente pés. Porque o mundo está tão cheio de pés?
As pessoas estão para lá e para cá, todas com seus pés. Indo e vindo. Eu corria de todos que tinham pelo menos um pé. Imagine minha reação ao ver uma centopeia!
Me confinei. Não havia mais porquê sair de casa, se toda vez que eu via um pé eu gritava e corria. Era um risco para mim e para quem tinha pés. Eu era um louco fissurado em tudo que não tinha pé. Passei odiar patas. Passei a não ver TV. A única coisa que eu fazia era não pensar em pés.
Mas ainda havia os meus. Após passar três dias criando coragem para fazê-lo, cortei meus pés com uma serra de madeira que eu havia herdado do meu pai. Cortei-os fora. Muito sangue. Após alguns minutos tentando estancar os meus tornozelos, decidi que o melhor seria mesmo morrer. Deixei o sangue fluir. O que me motivou foi a esperança de haver um lugar para mim após a minha morte. Um lugar onde não houvessem pés.
Morri. Sem pés. Meus pés pareciam sapatos, descansando no canto da parede. E para a minha surpresa, Deus existia. E sabe um segredo que não contaram na Bíblia? - talvez estejam guardando para a próxima edição.

Deus não tem pés.

Um comentário:

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