I
O cárcere é duro. Tem gosto de cinzas e peso de universos. É reflexivo, agoniante e doentio. Ferino e cruel. Há tanto tempo, que já nem tenho mais onde contar em meu corpo. Não tenho mais onde e nem tenho material para riscar, nestas paredes irrompíveis que me envolvem, os dias que já se passaram. Minha boca já não é úmida. Nem tem mais o gosto. Minha mente se cansa, repetindo os mesmos pensamentos ao longo deste tempo que eu já parei de contar.
Certa vez ouvi de um homem que Deus disse que todos pagariam pelo que fizeram. Estou a pagar em vagarosas, monótonas e cruéis parcelas de dor, solidão e sofriguidão.
No início era interessante me conhecer, passar mais dias comigo, longe da desilusão dos ventres humanos. Longe dos contatos carnais, espirituais e aborrecimentos do dia a dia em sociedade. Parecia-me fantástica a ideia de uma anarquia individual com meu próprio ser. Tudo mentira. Comecei a desgostar de mim, quando percebi o quão fraco sou.
Não houveram discursos mirabolantes em meu julgamento. Pairava sobre o tribunal um silêncio sepulcral, que me fez refletir sobre o quão lindo são os dias azuis em que o céu não tem nuvens. O juiz expôs todas as acusações. Perguntou-me onde estava meu advogado. Respondi que não tinha um. Pediu-me para apresentar minha defesa.
"Em minha defesa, apenas tenho a consistência sólida de meus atos. Se aqui eles estão sendo usados para me crucificar, só tenho a oferecer em minha defesa o meu silêncio. O silêncio”
Fui condenado. Anos de prisão. O silêncio é o único que ainda lembra meu nome, me persegue e me cura. Admiro minha coragem e até onde eu consegui chegar. Cheguei ao fim de minha estadia nesta prisão putrefata. Conheci homens que morreram, que fugiram e que choraram. Conheci um que enlouqueceu. Sou um pedaço de cada um, a parte boa e a ruim. Sou o que se vale de cada homem desse mundo.
Um renegado em busca de liberdade.
Hoje é meu último dia de cárcere. Após anos querendo suicidar-me em busca de um lugar onde houvesse alguém além de mim, após riscar todas as manhãs um fino rabisco na parede, registrando para a história mais um dia que nascia através das paredes, a lei vai abrir esta porta que está a minha frente. Pegarei meu relógio e minhas vestes num armário qualquer e vou ver um mundo que não vejo há tempos.
Nem todos os dias são os melhores dias de nossas vidas.
Meu crime: não importa. Minha história: uma ferida que nasce de dentro pra fora, rasgando a pele e lacerando o papel. Minha pena: ver mais uma vez esse mundo que nunca vai ter fim.
João
"Abra suas asas, solte suas feras, caia na gandaia, iê, iê, entre nessa festa..."
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